sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Precisamos falar disso

Edvard Munch, meu mestre mais querido, na obra A Dança da Vida

Quando era pequena ouvia minha avó evitando falar em algumas doenças. "Fulano  sofre daquela doença que não se fala", "Sicrano morreu daquela doença". E eram uma expressão de desgosto e a minha cara de indagação "mas o que será?". Mais velha quis saber por que não se falava. Um dia ela explicou "não se fala, porque quanto mais se falar, mais se espalha". Hoje me pergunto se esse mais se espalha não significaria mais se tem consciência, entendimento da coisa...e plum...se descobre que tem a doença, o problema, a coisa. 
Não falar sobre um problema, implica em não saber reconhecê-lo. Curá-lo. 
Algumas coisas estou aprendendo a falar agora. Adulta. Três décadas e meia na bagagem. Há uma década perdi uma pessoa muito querida, que fez parte de minha vida. Ela foi perdendo a clareza. Ficando nervosa.  Falando com pessoas que não víamos. Querendo partir para outro lado. Ouvindo orientações. Um dia, saiu de casa às pressas. Eu sabia que não haveria jeito. Não houve. 
Não conversamos sobre isso. Todos espiritualistas. Preferimos seguir. Trabalhar. Não tocar  naquele assunto. Porque não se deve falar nisso. Essa palavra ecoa e afeta. Evoca energias que não queremos.
Dois anos depois, minha mãe foi ficando com manias. Hábitos diferentes. Idéias fixas. Não dormia. Falava sempre frenética. Muito agressiva. Uma noite veio o pesadelo em toda sua intensidade. Dessa vez, alguém interviu. Veio uma internação. Diagnóstico. Falta de clareza. Muitos enfrentamentos. 
Diante do cotidiano com a bipolaridade, doença de que minha mãe sofre, aprendi que há coisas que temos que aprender a conviver. E que encarar um problema psiquiátrico  não é mais duro que encarar um câncer - aquela doença que não se falava. Falar de problemas psiquiátricos é um passo importante para conhecê-los,  superá-los. 
Eu tinha muita vergonha de compartilhar as questões de minha família. Mas com o tempo fui percebendo que muitos amigos próximos convivem consigo e com seus entes queridos, com problemas tão iguais aos meus. Depressão, melancolia, compulsão, bipolaridade, esquizofrenia, ansiedade. Doenças, marcas do corpo e d'alma, seja lá o nome que dermos a isso.
Aprendi na prática que o tripé cuidar do corpo físico (seja medicalizado, seja tratado de formas alternativas e menos impactantes), o corpo emocional (terapias formais ou holísticas) e espiritual (na amplitude que as formas de ligação com o seu divino abrir) são fundamentais para nos sustentar por aqui. Nos fazer mais fortes para lidar com as doenças e desafios, que o estar no mundo nos provocam.
Reconhecer que adoecemos também daquilo que chamamos alma não fará proliferar nossos males. Talvez nos torne mais humano e fortaleça para enfrentar nossas dores. Superá-las. Dar força a amigos e parentes. Para que possam saber agir quando o problema acontece. Para dar amparo. 
É preciso falar dessa dor que se esconde em vergonha. Dessa dor que confundimos com fracasso ou desistência. Precisamos falar disso.
Até que não seja mais preciso. 
Até que tudo sare.
Até que consigamos nos olhar nos olhos e entender.
Até que consigamos olhar no espelho ou sem espelho.

Um comentário:

  1. Por favor não deixe de escrever. Tem um tesouro em si que corre nas veias e desagua nas mãos, na ponta dos dedos, passando para a caneta. Seria uma pena que o mundo perdesse tal riqueza.

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