quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

[poemas] Haikais Negros

Oxum teu espelho
Mostra o que não vejo
S'ouro escondido


***

Meu cabelo não nega, nego
Mulata ou suas negas, nego
Negra Soul

Créditos: Priscila Fulô

[poemas] Haicais vagabundos

Humanizo-me
quando me deixo afetar
pela a-fé-tividade


***

Desdenho o desejo
Desejaria querer o que posso?
Mas não é o desejo

[poemas] Soneto para Oxum

Oxum e os seus. Riscado: Mônica Santana


Esses três moços: Exu, Oxossi, Ogum
O mensageiro, caçador, guerreiro
Perderam-se no espelho dela
escorreram no mel d'ouro d'yabá

Xangô pousou seu martelo de rei
apagou fogueira, deixou esposa
Deu anel, pulseira, raio, trovão
escorregou nas águas d'yalodê

Orumilá entregou seus mistérios
Charmosa, a moça lhe toma posto
Adivinha os segredos d'Ifá

Vence os falos floretes com sorriso
Derruba reis com gozo gemido
Oxum, rainha, todos deu a si.


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

[poemas] Lápis Pelourinho

Meu lápis ficou escravo
Da presença deste homem
Cujo rosto em verso gravo
Cujo corpo rogo: amém!

Meu lápis é um cativo
De minhas memórias líquidas
Dos lampejos de sua beleza
Dos ruídos que ainda cultivo

De solidão, lápis gemeu
De lembrança, lápis riu
De gozo, lápis chorou

Ausência tornou-lhe mudo
Versos fracos, brancos, surdos

Palavras do amor liberto

Cenas da Mestiçagem

Pintura de Caribé, um dos criadores da representação da mulata nas artes visuais do século XX

Cena  1
Praia. Um menino negro brinca com uma menina branca, de cabelos loiros e olhos claros. A família negra sentada na cadeira, aprecia a cena.
Pai afirma com orgulho: - Meu filho é  retado mesmo. Ói lá ele brincando com a loirinha. Repare como a loirinha tá louca por ele. Esse menino é danadinho! Conquistou a loirinha.
A mãe e os tios comemoram e concordam o feito do garoto.

Cena 2
Uma mulher negra assiste ao noticiário. Ela não é uma mulher negra de tez mais escura, o que leva a ter algumas confusões sobre qual é sua raça.
Um cantor famoso da década de 90 aparece na TV e sua trajetória com as drogas é relatada no programa, sua luta sem sucesso para superar o vício.
Diante da imagem da celebridade decadente, um homem negro, ela conclui:
- Negro, quando não caga na entrada, caga na saída.

Cena  3
Numa seleção de modelos, uma profissional foi preterida. Negra de tez mais clara, ela não foi escolhida por não ser o suficientemente preta. Ela se sentiu discriminada. A autora, que vos fala também uma vez,  perdi um trabalho por não ser escura o bastante. O fato foi que lamentei pelo cachê perdido, mas sei que negras do meu tom de pele estão mais frequentemente nas publicidades (nas poucas que temos), nos filmes e telenovelas. Negras mais escuras não estão representadas em lugar nenhum. Não são mulatas o suficiente - e a mídia brasileira só suporta lidar com mulatas - seja lá o que isso for.




domingo, 25 de janeiro de 2015

[lírica] Sobre Marte e outros deuses

Desde que Marte pousou no céu, tive assombroso medo do fogo e dos homens.
Desde que Marte pousou no céu e Kali iniciou suas danças sobre a terra, coloco ao meu lado da cama uma xícara de mel. 
Contudo, o calor é tanto que esse mel borbulha e ferve. 
Desde que Marte pousou no céu e Ogum deu a partida no céu carro, entoo o balido da cabra.
Destilo o mel na água para que meu corpo funcione. 
Bebo o mel e o sinto no encontro entre meus dedos: sou irritada e doce.
Exu me abraçou e fiquei tranquila. 
Yansã me abraçou e sua ventania me trouxe paz: estou em casa. 
Oxalá me deu suas bênçãos e no Bomfim vi tanta luz.
Desde que Marte pousou no céu, invoquei todos os santos e divindades.
Convoco a paz de São Francisco. 
Peço que as Yabás acalmem os rios revoltos na Nigéria.
A Nossa Senhora que inspire a tal liberdade, fraternidade e igualdade, tão cantada e nunca vista.
E que Netuno não nos faça confundir fé com dominação.
Desde que Marte pousou no céu, adoto O Eremita como amigo.
E na saída dos barcos para Yemanjá eu peço: abundância.
E que o mel seja doce. 


sábado, 24 de janeiro de 2015

Sobre café com leite e cabelos bons

Doze tons de pele criados pelo Uniafro/Pinktor melhor satisfazendo a diversidade étnica brasileira


Uma mulher com um cabelo afro bonito, frondoso, armado para cima. Ela é bonita. Tem a pele bem preparada pelos produtos de beleza que vende: sua beleza é seu cartão de visitas. Ela está num salão, onde apresenta produtos e maqueia mulheres. Em sua volta, todas mulheres são negras. Cada uma com uma textura de cabelo diferente, experimentando uma diferente estratégia de penteado: tranças alongadas, tranças nagô, cabelos crespos naturais, megahair... de maneira geral, parecem mulheres bem fortalecidas em sua forma beleza.
A tal mulher se olha no espelho e conta que seu pai era índio - engraçado que na cultura  mestiça brasileira, alegar que os antepassados são índios, fazem alguma espécie de distinção para aquele negro que visivelmente não tem presença do branco em sua árvore genealógica. Ela explica que suas duas irmãs tem cabelo bom e apenas ela nasceu com um cabelo como aquele. A conversa não rende. 
Sinto-me um pouco aliviada. 
Diante de tantos cabelos, extremamente maleáveis para se fazer o que desejar, é pesadamente triste ouvir que bom é só uma estrutura de fio, lisa, muito distante da maioria das cabeças dessa cidade.
Escuto a pouco na TV a experiência de uma artista visual, que desenvolve uma palheta de cores a partir da diversidade da peles brasileiras. A criadora ofereceu formulários para que o público preenchesse auto-afirmando qual seria a sua cor. Café com leite, chocolate, morena bronzeada pelo sol... A repórter fala da criatividade brasileira e a beleza das negociações da nossa mestiçagem.
Do sofá, discordo. Não enxergo beleza nas negociações usadas pelo brasileiro para não se afirmar negro e se escamotear em qualquer outro  distintivo do que isso representa. 

A artista visual Adriana Varejão compôs a paleta de cores intitulada Polvo, contemplando a diversidade de cores do povo brasileiro, mas também fazendo um questionamento para os fornecedores de tinta óleo: "o que é cor de pele"


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Sista Nigéria

Uma das mais de 200 meninas sequestradas pelo Boko Haram.

Desde o dia 8 de janeiro, em algum momento do dia, faço uma prece pela Nigéria. País a quem devemos muito da nossa herança cultural, mas que pelo nosso baixo conhecimento sobre o continente africano, chapamos numa evocação de Mama África, como se toda ela fosse uma coisa só. As influências idiomáticas que carregamos do yorubá, os hábitos nagôs, o trançado dos cabelos, o panteão mitológico do candomblé que cultuamos são um pouco que nossos antepassados nigerianos trouxeram para cá dentro dos navios e fizeram resistir ao longo de séculos. Devíamos cerrar o punho sobre o peito e dizer sem dúvida: Somos Nigéria.
Somos parecidos também em história de colonização, exploração e diminuição do valor da cultural nativa, em exaltação dos hábitos da metrópole, além de sucessivos golpes sobre a democracia e governos corruptos, absolutamente descomprometidos com o desenvolvimento local. Com o agravante, que a presença do colonizador se fez mais austera, até os anos 60, fazendo da Nigéria, um país cuja independência é ainda uma novidade - realidade comum aos vários países do continente, que há menos de 50 anos iniciaram seu processo de descolonização.
A cultura tribal esmagada pelas religiões hegemônicas: o cristianismo e o islamismo, proporciona uma divisão dentro do país, que é ao sul, mais desenvolvido e católico e ao norte, mais islâmico e rural. A cultura ocidental imposta como superior, não à toa é motivo de ódio, dor e fraturas, dando margem ao surgimento de um grupo extremista e violento como o Boko Haram, que significa "a educação ocidental ou não-islâmica é pecado", cuja a missão é formar um califado em toda região e aplicar a lei sharia, uma distorção da lei islâmica. 
Em cinco anos de atividade do Boko Haram, já foram vitimadas mais de 13 mil pessoas, sendo em número significativo as mulheres e meninas as principais vítimas. Além do atentado dos mais violentos da história do terrorismo do mundo, sobre a comunidade de Baga, matando em pouco tempo 2.000 pessoas, sem encontrar resistência ou enfrentamento por parte do estado nigeriano, o grupo extremista também foi autor do sequestro de 276 meninas, entre 8 e 15 anos de idade, transformadas em escravas sexuais e obrigadas a casar com seus algozes. O componente misógino do grupo chama atenção pela crueldade e perversidade, evocando a Sharia como autorização para o estupro e escravização das mulheres e meninas. No Norte da Nigéria, mais de 80 escolas fecharam as portas, por temor da ação do grupo - que almeja impedir o acesso das mulheres à educação formal, especialmente a ocidental. 
Os governantes nigerianos seguem omissos, silentes e pouco comprometidos com o enfrentamento ao grupo, numa atitude de conivência, não oferecendo resistência nem compromisso com garantir a vida do seu povo nem frear a fúria do grupo. É inevitável perguntar o porque de tamanha omissão, seja por comprometimento com lideranças desse grupo, seja por desdenhar das vidas de mulheres e meninas violadas e transformadas em bomba. Seja pela atenção maior com ser corrupto e menos com as vidas consumidas pela barbárie. 
Como de costume, o resto do mundo mostrou suas condolências às vidas dos franceses mortos pelas ações de terrorismo em Paris. Líderes de todo mundo compareceram e mandaram representantes, inclusive dos vizinhos da Nigéria, alguns na mira das ações do Boko Haram. É inevitável pensar que a vida de 13 homens europeus tem valor superior que milhares de nigerianos mortos com requintes de crueldade. A imprensa mundial rendeu pouco espaço para discussão, pouco esforço de análise e várias desculpas foram dadas. Aqui mesmo, portais de notícias argumentaram que a violência em Paris nos choca mais por sermos mais próximos dos franceses, pelas relações afetivas. De cá, numa terra onde rendemos flores à Yemanjá, fazemos festa para Oxalá e toda cidade é de Oxum, estranho um pouco a declaração. Parece-me que a afetividade e a capacidade de emoção é mais inclinada para vítimas brancas que negras. Não é estranho que num país onde meninos morrem diariamente pelas mãos da polícia brasileira, sem julgamento ou investigação, a sociedade e a gestão pública fecha os olhos. É mais fácil se comover com o brasileiro morto pelo regime da Indonésia, que legalmente concede pena de morte aos envolvidos com o tráfico. 
Assim, explicações várias : a dificuldade de obter imagens seja pelo acesso tenso ao local do massacre, seja pela falta de conectividade na região; o descompromisso dos governantes em fornecer informações precisas dos fatos... Muitas foram às justificativas para o desigual tratamento dado ao assunto, todas baseadas nos velhos critérios de noticiabilidade...que servem pouco  na hora de se priorizar que BBB foi flagrado na praia, tomando sol. Sangue derramado de pretos não comove: faz parte da história negros se matando. 
Pensei em empreender iniciativas, unir pessoas, articular uma ação. Tentar fazer com que Salvador simbolicamente afirme "Somos Nigéria". Tentei dizer para os portais de notícias brasileiros, para Globo  News, para os noticiosos: "queridos, somos descendentes desse povo. Somos mais próximos deles do que qualquer francês do Charlie". Não sou essa articuladora. Sou apenas uma  pessoa que escreve. 
Acendi  uma vela pedindo pelas minhas irmãs. Peço que elas possam reencontrar a liberdade. E que alguma luz resplandeça sobre a cabeça dos que gerem o mundo: façam algo pela Nigéria. Não precisamos de uma nova Ruanda nos anos 2010. Não precisamos fechar os olhos para mais uma ação genocida. 
Je suis Nigeria. Je suis mes frères. 
Bandeiras disposta no acesso a um dos mais antigos terreiros de candomblé baiano. Lá está a Nigéria representada.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

"O que você vai fazer com seu cabelo"

De como eu fui descobrindo meu black, nessa descoberta de como cuidar do cabelo e tomar poder.


Desde muito cedo, entendi que meu cabelo era alguma espécie de problema, a ser tratado com severa atenção. Minha mãe me deixava no salão, para que fossem feitos os procedimentos e ia para seu trabalho. Meus cabelos sempre foram muito muito cheios. E as cabeleireiras olhavam com extremo desgosto. Bem como as demais clientes, que pediam para passar na frente, pois meu cabelo iria demorar.
Primeiro foi o ferro. Que fedia. Queimava meu coro cabeludo e as orelhas. Mas deixava meus cabelos soltos e eu podia correr com eles. Depois foram os alisantes, os permanentes. Que igualmente fediam, machucavam meu couro cabeludo e me permitiam soltar o cabelo por um tempo. Havia as tranças. Eu não gostava porque elas apertavam meus cabelos, esticavam meus olhos e levavam diariamente 30 minutos de preparo. 
Aí veio o corte curto e com ele deixei de ser menina. Virei uma entidade estranha. Pouco atraente e feminina. Mas era prático. Especialmente para quem não tinha dinheiro para os alisantes. E aos 15 anos, o advento dos permanentes afro e o sonho dos cachos ao vento. Os umidificadores, ativadores de cacho, massagens. Me sentia quase uma negra americana, com cabelos incríveis. 
E aí os lapsos de tempo, meio esquisita,  entre o cabelo de química e o indesejável cabelo natural. Não havia capital para atender às demandas constantes de produto, nem manter aquele cabelo incrível. Então, vinha o escárnio, as piadas, os comentários maldosos: "ela é ridícula com esse cabelo". E não sabia que os colegas do grupo religioso comentavam às gargalhadas sobre meu cabelo estranho. E ficava entristecida porque o menino que eu gostava no final da adolescência enfatizava que mulher precisa ter "cabelão".
Escravizada pelos alisantes, permanentes, defrizantes, escovas, eu vivia oprimida por passadeiras, lenços, grampos e o temor constante do corte químico. Eu ficava bonita de três em três meses, seis em seis meses. E tinha um pesar de ter nascido assim...com um cabelo que todos e eu própria, consideravam ruim.
Até que, depois de ver, tantas meninas que eu considerava bonitas, aderindo às tranças com apliques, considerei a possibilidade de utiliza-lo. E algum clique deu em mim. E pela primeira vez na vida me considerei bonita. E bastante negra - até então eu não tinha certeza, porque não sou uma negra que as pessoas afirmem sem eufemismo - e isso me delimitou um lugar novo até então: uma espécie de aceitação se firmou em mim. 
Quando chegou a hora das tranças serem trocadas, sozinha no quarto, peguei a única tesoura da casa, um tanto cega e com um espelho fui cortando o comprimento cheio de química. E depois de anos descobri como era meu cabelo mesmo. Eu já não lembrava desde a infância. O que veio a seguir foi uma insegurança, misturada com uma afirmação e a busca de força para lidar com as perguntas "O que você vai fazer com esse cabelo? Parece uma pessoa desmazelada", "Você não quer dar um relaxamento", "Precisa fazer algo com esse cabelo". As expressões de desagrado da  minha família passaram a ser algo a conviver. Aos poucos encontrei uns jeitos de fazer tranças de dois, eventualmente novos apliques, até que um amigo disse "Você seria muito mais bonita se aceitasse seu black mesmo. Você vive disfarçando". 
Ele era branco. Ele falava uma verdade que nem eu sabia. Eu ainda disfarçava. E muito. Parei de enrolar de dois. Fazer coquezinhos. Há anos desisti de qualquer química e encontrei um eixo de entendimento do lugar político da minha escolha estética. Entendi que meus cabelos são uma zona de afirmação: sou acintosamente negra. E sinto no meu cabelo cheio, que abre a cor das pontas a cada verão, o que faz de mim, uma sarará - termo ressignificado por Gilberto Gil - minha força. Minha beleza, minha definição de um lugar de estar no mundo. 
Definição essa que já me rendeu o espanto de um amante branco, que nunca estivera com uma mulher negra "Meu Deus, como seu cabelo é macio". A pedrada carregada de xingamentos de um garoto negro. A evocação por "Xica da Silva" nas ruas de Buenos Aires. Orientações atenciosas de rapazes negros nas ruas do Rio Vermelho "Ninha, você gostosa, mas alisa esse cabelo, mãe". Já ouvi muita coisa nessa vida. E hoje, consigo não me importar. A minha escolha estética não é unânime. Só é política. E isso já  é muita coisa.

Uma criança do final dos anos 70, com cabelos fartos em laços de fita. 



Algumas produções interessantes sobre o tema: 
"Americanah", romance de Chimamanda Ngozi Adiiche, que fala de muita coisa: racismo, amor, padrões de beleza, países emergentes...mas especialmente de cabelo e o seu lugar de opressão e empoderamento na vida de uma mulher negra. Um deleite.
"Sem perder a raiz - Corpo e cabelo como símbolo da identidade negra", tese de doutoramento de Nilma Lino Gomes. A pesquisadora percorreu salões de beleza, com especializados em cabelos crespos, em Belo Horizonte e observou esses espaços como ambientes de sociabilidade, compartilhamento e fortalecimento das mulheres negras. 

Dois virais fresquinhos da internet:
A Campanha Francesa da Dove sobre as crianças e a importância da aceitação dos cachos:

O site americano Cut  fez um vídeo demonstrando as várias mudanças negras ao longo dos últimos 100 anos


Representar para ser representada

Crédito: Priscila Fulô


Há um tempo me inquietava a forma como a mulher negra é (quando chega a ser representada) nos produtos dramatúrgicos brasileiros. A negligência, o estereótipo, a falta de ousadia, a invisibilidade e a mesmice me incomodaram de formal que isso me demandou atenção de forma tal, que fui acumulando leituras e inclinando-me na direção de fazer disso minha pesquisa de doutorado.

Até o dia que percebi que faria uma tese para identificar o identificado: a mulher negra ainda é longe de ser representada no Brasil. Para além de ser a amorosa babá, a fogosa empregada, a ama de leite eterna e sem família, ou a amiga inteligente e bem vestida da mocinha branca da história, não há muito mais espaço proposto na nossa teledramaturgia. Depois de muito vociferar, bufar, rascunhar e protestar nas mesas de bar, devo confessar que essa representação vem me desinteressando. Causou-me desinteresse perceber que não há nada de novo e o obvio ululante não me moveria para lugar algum. Até aceitei, o desagradável comentário do avaliador da banca de seleção de doutorado: “sua pesquisa é irrelevante”. Naquele momento me soou machista, racista e muito antipática a avaliação daquele senhor. Hoje, deslocada no tempo, percebo que minha pesquisa seria realmente irrelevante, porque em dez anos de conquistas sociais, pouco avançou na representação do negro do Brasil (embora haja espaços sim de conquistas e momentos de rara oxigenação).

Até o momento em que a ficha me caiu: nada vai mudar enquanto o negro, mais especificamente, a mulher negra for autora. Enquanto meninos crescidos em prédios da zona sul do Rio de Janeiro, que só  frequentam o nordeste nas férias de verão, o Norte quase nunca e só tem como referência de mulheres negras as suas respectivas empregadas domésticas, cuja vida é desumanizada e superficializada, nada vai mudar em termos de representação.

Há poucos dias terminei a leitura de “Americanah”, da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adiiche. E página a página surpreendi-me com  a extrema identificação estabelecida entre mim e a personagem Ifemelu. Identificação que me lembrou o meu primeiro contato com Loreley, personagem que me rendeu um solo tealtra, uma pesquisa de Mestrado e um looongo envolvimento com Clarice Lispector. Contudo, devo dizer que agora o espelhamento produzido com essa autora e personagem foi mais estreito, mais biográfico por assim dizer. Essa mulher negra empoderada, comunicadora, que transita num mundo acadêmico e político, onde as discussões sobre o racismo pululam, mas também a sua expressão velada, pareceu-me tão próximo, que estou aqui. Falando dele.

Assim, compartilho aqui minha mudança de projeto de pesquisa. Não me interessa mais saber como Miguel Falabella tenta representar mulheres negras. Por que Avenida Brasil faz uma incrível periferia carioca de jogadores de futebol e cabelereiras sem negros e negras. Me interessa saber os mecanismos usados por mulheres negras para se representar. Conhecer dramaturgas e diretoras negras que Brasil a fora, criam seus próprios textos, personagens e falam para os seus e não seus.

Muda cacique.