domingo, 29 de dezembro de 2013

Todos os olhos

No metrô, distraio-me dos olhos do senhor que me examina atentamente. Incansavelmente o senhor me observa. Distraio-me de distrair-me e curiosa observo pelos espelhos frente. Ele quase aproxima seu rosto do meu. Olha mãos, braços, rosto, sapatos. Toda aquela inquirição me afronta.

Novamente me distraio para não ser afetada. "Sou turista. Devo ser uma pessoa leve." Outra estação, moço de barba bonita, óculos de Fellini. Tanto me observa que senta ao meu lado. O cheiro forte de álcool às 15:00 no Centro da cidade rompe com qualquer possibilidade de desejo. E percebo a inoportuna observação dele sob as lentes dos óculos escuros. 

Repasso na mente o que visto: camiseta branca, bermuda jeans até o joelho, sapato preto branco. "Definitivamente não estou irresistível". O que há de espantoso em mim?

Já diante das portas de saída, uma mulher me assiste e balbucia palavras. Encara meus sapatos e pronuncia algo que tento ler. 

Respiro aliviada. Meus sapatos são realmente bonitos.

Banho de Rosas

Peguei duas rosas vermelhas, despertarei na água fervente. Coloquei cravo, canela, essência de ylang-ylang. Fechei os olhos e pedi o despertar de uma energia que vi poucas vezes na vida. De uma moça sorridente que já soube ser. Banhei o corpo, a fronte. Pedi que as energias bonitas de vida e terra voltassem para meus pés. E desde então, deparo com a morte de tudo aqui que pedi. Tudo morrera há tanto e tanto tempo, que dias passados do banho, dos pedidos de fé, reconheço que meu pedido é impossível. Há tantas mulheres mortas dentro do meu peito, abortos não expelidos nesse útero inutilizado, que não há vida possível em mim. Estou morta e não há rosa vermelha que me devolva o viço. 

domingo, 22 de dezembro de 2013

O garoto

Depois da festa, voltava risonha para casa. Pão cheio de recheio saboroso, enrolado em papel manteiga. Rua vazia, muito vazia. Assim como ficam as ruas em dezembro depois das 20h. Todos se guardam nas festas de família, confraternizações. Ou protegem-se temendo os ditos gatunos, que ficam à espreita de 13° salários mínimos displicentes, perdidos em carteiras. Ao ouvir uma tosse longa atrás de mim, temi que fosse alguém assim, que estivesse em meu encalço. Não era um homem, era um garoto de poucos anos, no máximo 9 anos. Carregava uma dessas caixas de Natal, onde imaginei haver donativos. Ele tossia muito. Tranquilizei-me ao ver um criança. Mas preocupei-me por pensar que era tarde, ele estava sozinho.
E ele continuou a tossir, cada vez mais próximo. E olhei pra ele mais fixamente, deixei que ele caminhasse ao meu lado.
"Que foi, tia? Tá com medo?"
"Não, tô vendo você tossindo demais. Tá tudo bem?"
"Tá sim. A senhora tá com medo?"
"Não. Se estivesse tinha andado correndo e tô aqui do seu lado. Por que você está sozinho a essa hora? Onde você mora?"
"Moro nessa mata aí da frente. Tô indo dar a volta para subir"
"Nessa mata? É mesmo?"
"É sim. Outro dia um homem tentou me estuprar. Eu empurrei ele, pedi para me deixar em paz. Você quer dormir lá comigo? Para eu não ficar só"
Até agora, não sei o que responder. Não sei, não sei, não sei. Não pude e ainda não posso dizer nada consistente àquela criança.
"Eu...eu tenho que ir para minha casa"
"Tá bom. Tudo bem".
"Olhe, tome isso aqui. Você quer?"
"Quero sim"
"Você aguenta levar?"
"Levo sim. É doce de uma festa? Festa de aniversário"
"É um pão salgado. De uma festa sim"
Não nos despedimos. Ele seguiu carregando a caixa e a bandeja. Ainda sinto como se um trem tivesse passado por mim. Por cima. Não sei se era verdade. Se o garoto fora violado por um adulto estúpido. Se ele vive sozinho naquela mata, guardado pela própria sorte. Não sei... mas se era sua imaginação de criança, ainda assim, era uma imaginação muito nutrida por coisas trágicas. Por imagens de dor grandes para uma criança imaginar simplesmente.
Digam-me. O que se faz.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

11/12/13

Acordo de um sono pesado. Precisei de Dramin para dormir sem interrupções. Perdi a natação. Perdi o horário. Não pude levantar. O peso do corpo era por demais grande. Fiz ligações de trabalho ainda deitada. Mandei emails ainda deitada. A cabeça frenética. O corpo imóvel. Antes de levantar, nas redes sociais a foto da mulher branca e suas servas escuras sob a chuva. Outra foto de um homem negro, machucado, despido e acorrentado numa cadeira. Roubara um frasco de desinfetante. Imagens do século XIX, que parece não ter fim na terra brasilis. 
Trabalho e reconheço que sou desconfiada demais. E essa desconfiança retira minha possibilidade de leveza, atravanca os encontros que a vida poderia me trazer. O medo do machucado que impossibilita de se ter a potência da vida. 
E no meio da tarde, leio o desabafo de um rapaz que por segundos sobreviveu de ter sido imprensado por um ônibus. Porque o trânsito expressa a selva em que vivemos, a sordidez que faz com que uma máquina maior torne um homem mais poderoso do que outro. A sordidez que faz com que a pressa das máquinas seja mais valiosa do que o direito de ir e vir de pedrestes e ciclistas.
E todo esse dia me tornou um pouco oprimida. Embora nada nada tenha me ocorrido. A vida me seguiu boa. Mas estranho a estranheza disso que é ser humano. Esse mal latente, disfarçado. E reconheço no ônibus que não somos irmãos. Sem os laços do afeto...não somos. Talvez seja um erro. Talvez haja mais beleza nas relações - porque de fato há. Sou mais afagada do que repelida. Sou mais gentil que áspera. Rio mais que choro. 
Preciso manter alguma esperança nisso que se constitui a humanidade.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Minha disritmia

Uma alegria contente, quase ensurdecedora de tão estridente samba por cima do peito. 
Razão nenhuma. 
Apenas o deparar-se com o riso de alguém cujo meu riso gostou. 
E cair do dia de sol, sob som de metais, cordas e batuques, atiça a vontade de alterar as coisas. 
De que as coisas permaneçam impermanentes e que o movimento seja a única tônica
E os quereres que não cessem
E descompassadamente quero aquele do riso. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Para cultivar flores

Com minha mãe, aprendi a desenhar. Com a minha avó, aprendi a resignação diante daquilo que é maior. Com ela, aprendi ter fé. De novo com minha mãe, aprendi a rir alto. Com minha tia Regina, aprendi o que é ter cuidado. Com Francisco, aprendi a gostar de história. Com Renata, aprendi a guardar papéis de carta na pasta. Com Priscila, aprendi a brincar, mesmo velha. Com Emília e Iara, aprendi a compor músicas pop. Com Yoshimeri, aprendi o que era ter uma melhor amiga e como não tratar, uma melhor amiga. Aprendi com ela também a escrever cartas. Com meu pai, aprendi que se deve perdoar. Com minha tia Ruth, aprendi que há que se vigiar e orar sempre. Com Tia Célia, aprendi a fazer bolo e cuscuz. Com meu tio Ruy, aprendi que se cuida da família sempre. Com pró Aldenice aprendi a ler. Com Lisa, aprendi que mudar nunca é demais. Com Ana Fernanda, aprendi a admirar os astros. Com Raiça, aprendi poesia. Com Roberto, Edmundo, Jacyan, Cláudio, Kleber, Fábio, aprendi a gostar e querer estar no palco, com amor e respeito. Com Saulo, aprendi a leveza  e com Paula, aprendi que fazer nunca é demais. Com Cássia, aprendi o rigor. Com Ramona, Nilton, Luciana, Kleper, Maick, Giorgia, Gina, Vânia, Rebeca e pessoas, que injustamente pelo açoite da memória falha, aprendi a valorizar o tesouro da amizade e a variedade de cores que ela tem. Agradeço aos tantos que cruzam meu caminho, enriquecendo meus passos, tornando-os mais firmes. Agradeço a generosidade das trocas. Agradecer ainda é pouco. Mas faço dessa escrita, esse exercício de gratidão como cultivo de flores, como cultivo da graça da vida. Que sim, é deveras graciosa, esgueirando-se na tessitura dos encontros, provocando esbarrões e afetos. 

sábado, 24 de agosto de 2013

Observando o amor

Há valor quando se vê uma pessoa na outra. O amor assimilado em forma de contágio. Em forma de lei, que se compactua, consente, confirma, dispensando o dever da gratidão. Valioso ver a validade do amor enquanto afecção, mesmo quando falta zelo - fruto da extrema ignorância. Que o amor possa ser boa influência. Possa mover poesia. E fazer cartões postais.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Ainda é tarde, amor

Um reconhecimento trago ao ver o rosto no espelho e identificar o bigode chinês sobre os grossos lábios: não, não, não amadureci. Sou ranzinza, bastante reclamona e altamente atolemada. Mas não sou madura. Ainda choro no escuro, totalmente indignada com minha solidão. Ainda danço no espelho diante de uma roupa nova e suspiro ao ver Brad Pitt nas telas grandes. Não sou madura. Me divirto com competições inúteis por colocação em joguinhos. Ainda brinco de casinha no The Sims. Ainda sonho com uma vida que serei uma mulher bonita, bem sucedida e cobiçada, com uma linda filhinha correndo pela casa e um marido amoroso, lendo jornal no sofá. Ainda sonho com um moça econômica que não aprendi a ser. Ainda sonho com o que acho que já poderia ter superado sonhar. O tempo de tanto devaneio já passou e não cabe mais minhas aspirações de menina de 15 anos. São já 34... e ainda sou a mesma menina que escreve coisas no caderno. Ainda acendo velas porque tenho medo do escuro. Ainda...é tarde.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A Lua

E lá fora a lua cheia inflama os nervos. Balas de borracha. Balas de pólvora inflamam músculos acesos que protestam contra fés sedimentadas sobre hipocrisias. Mulheres se beijam. Alguém cobre o rosto. Por aqui, pouco barulho. Inflamadas só as espinhas. Ocuparam a Câmara de Vereadores. E diante da indignação virulenta, uma esperança de que os olhos vejam que as coisas não vão bem, embora já tenham sido muito piores.
O horóscopo avisa: não se exponha à rua, à noite, aos deslimites. A doença está no ar. Mas me sinto esperançosa: parece que finda o tempo para o conformismo. Me sinto esperançosa: parece que finda o tempo para os tapetes mágicos que escondem poeira de séculos. Parece que finda. Mas a máquina de produzir inflamações ainda não pára. Ainda não fora desengrenada: a rua é silente, porque nos guardamos em casa pelo medo. A rua é silente, porque ninguém se arvora a andar nas ruas às 22h. Nem eu... que me resguardo, motivada pelo horóscopo e pela covardia.
A lua, quando enche, deixa as emoções turvas. Faz os dentes inflamarem, recorda as fraturas, embaça a noite. A lua, quando enche, traz coragem, lembra o amor. A lua também ilumina o Papa.

sábado, 13 de julho de 2013

Desnaturalizando o medo

Dos 11 aos 18 anos cultivei a feiura. Sim, achava que só a feiura poderia me proteger do mal. Me tornar invisível aos olhos dos homens, que notariam que eu teria crescido. Não era mais menina. Assim, tinha uma apreço especial por usar roupas largas, mangas compridas e tudo aquilo que escondesse as formas do meu corpo. Aos 11 anos comecei a andar sozinha na rua, para ir à escola, resolver coisas para minha avó como comprar pão, passar na bomboniére, comprar jornal. E andar sozinha era aterrorizante. Era. Naqueles tempos ouvia as coisas mais vulgares, mais nojentas, que uma menina de 11 e 12 anos, nem idéia do que se trata. Me sentia assustada. Com um medo que doía nos ossos. Não contava isso para ninguém, tinha vergonha.
Os mesmos homens asquerosos que tentavam a todo custo passar a mão na ovelha nova que eu era, eram respeitosos quando eu saia com minha avó, com minha mãe. Mas eu sabia quem eram. Sabia dos olhos perversos. E entendi o código que ali se estabelecia, o código de respeito diante dos adultos e vilania, quando a menina estava caminhando sozinha.
Passei a andar abraçada com os cadernos. Porque nesse trajeto de casa para o ponto de ônibus, um guardador de carro tentou tocar meu seio. E eu consegui bater nele com o caderno. E a partir desse dia, os cadernos e livros tornaram-se escudos.
Por toda adolescência, cultivava certa crença, que vivendo no Pelourinho e andando pelo centro da cidade, a melhor coisa que me acontecera foi não ser bonita. A feitura, ao meu ver, protegia minha dignidade. Evitava que eu me machucasse severamente.
Aos 18, 19 anos, comecei a andar de camisetas. Novidade no meu vestuário. E ainda não era proibido andar sem sutiã. Achava que por não ter seios grandes, estava liberada para usar camisetas confortavelmente. Por conta disso, fui perseguida da Castro Alves até o Shopping Lapa. Um sujeito falava sujeiras atrás de mim, por mais que eu desviasse, andasse rápido, lá estava ele. Manifestando seu direito de me oprimir. Desse dia em diante, não me foi mais permitido ser tão livre.
E embora sofresse, tivesse medo, não entendia que tudo aquilo fosse violência. Entendi isso muito tarde. Nesse banalidade do machismo e da opressão gerada por ele, é natural como respirar, que temos que andar cobertas, com a cara enterrada no chão, travar as pernas, usar sutiã, calcular os passos, não estar sozinha à noite. É natural como respirar achar que somos mulheres e temos culpa desde o princípio.
Hoje, curo-me da proteção que criei, ao me conformar como feia. Essa proteção trouxe algumas feridas, diferentes daquelas que quis me proteger. O tempo fez ver que a violência está colocada para as feias, as bonitas, as vestidas, as despidas. Está colocada e só mudará quando deixarmos de entendê-la como natural.
Esse texto foi gerado porque ontem, enquanto caminhava na rua, um homem virou-se inteiro para uma jovem, uma estudante de uns 18 anos e comentou como o rabo dela era gostoso. E isso me deu nojo. E queria ter mandado ele se respeitar. Era uma menina, que como eu fui, agilizou o passo. Tentou ser rápida e passar despercebida, diante do seu constrangimento. E é nosso constrangimento que alimenta a opressão das ruas.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Gratidão

No meio da vida, constato que não estou vivendo. A vida me deixou em alguma esquina, talvez quando ainda era uma menina. A vida escapou por entre os dedos. Finjo mantêm-lá. Finjo sonhar. Sorrio a gratidão das boas coisas. Sou grata. Embora soluce ainda a perda da vida e a conservação do peso. Sou só triste todas as noites. Sou grata ao amanhecer.

domingo, 2 de junho de 2013

Sem título

Todas as noites sonho a encenação da vida que me escapa: beijo rostos que se esvaem qual vapor de chaleira. Toco mãos que não são. E no soluço desperto do abraço. E a lágrima entende que não há criança alguma em meu colo. Desperta, acostumo com a realidade que se alimenta de sonhos abortados pelo tempo. A solidão é a mais presente companhia desde os tempos das bonecas. A solidão gosta mais de mim que nenhuma outra pessoa. E sinto que por mais que encene todas as noites adentro companhias, nas manhãs invariavelmente, é ela quem me dá bom dia.

Libertando a ausência

Há quase um semestre ausente da escrita. Não da escrita do trabalho, não da escrita do estudo. Mas da escrita que me liberta do que me torna mecânica. Da escrita que devolve a vida tirada pelo livro de ponto, pelo cumprimento do horário e das pautas. Andei meio morta, vivendo as obrigações que me cabem. Pouco criativa e pouco sentida. O poder esvaindo entre os dedos, na medida que não olho para os passos que dou. E nessa vida que esvai pela falta da pulsação do escrever bobo nessa página desartizada, apenas comprometida com a tarefa de dizer coisas cujo sentido me escapa.
E diante da folha em branco, penso que não vou escrever: mas a pura liberdade de poder dizer sem quando, onde, porquê, quem, nem pra quê, obrigam-me a exaltação. A liberdade é minha feliz condenação. E impus-me o silêncio, em detrimento da liberdade, coisa que tanto prezo. Liberto-me assim da ausência. Convoco a prosa, a poesia sem rima, as linhas tortas. Convoco a vontade de libertar todos os gritos e assumo que a vida está no verbo e que ele se faça tenra carne. Amém.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Da presença do que falta

Com a agenda atribulada, reconheço: luto contra as ausências. Luto contra a falta do que sentir. O que fazer excede aos braços. Mas onde repousar minhas horas vagas, carecendo de devaneio, não há regaço. As ausências se adormecem na lista de tarefas, silentes. A ausência me consola, pois já nao lembro daquilo que poderia ser presença. A ausência nina meu sono. Ms coloca paRa sonhar, mas nem no sonho confio, pois sei que debaixo de qualquer meneio de estar, há a adversativa que nega e faz perene a falta. E a ausência vira pedra e me ancora no fundo do mar, peixe denso de águas profundas.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Meninos da minha rua

Storyline I
Menina cresce. Padrasto nota e deseja. Rua fala. Ela engravida. Eles se amam. A mãe silencia, finge que não vê e em pleno século XX, morre de tuberculose. Ele também. A filha  cuida dos filhos dele com sua mãe, dele com ela.

Storyline II
O menino mais bonito da rua foi o primeiro a ser pai. Negro azeviche, emprenhou menina branca. Ficou forte, puxou ferro. Ficou menos bonito deformado para ser segurança. O menino mais bonito da rua se engraçava com todas. Morreu na Ladeira da Praça, jogando dominó numa madrugada de dia comum. Mataram. Não se sabe porquê. Sua mãe não foi mais a mesma, embora tivesse seis filhos, já não podia fazer outro tão bonito como aquele.

Storyline III
Pai deixou o filho com a amante. A amante criou o filho como se fosse seu. Jorge era perverso. Batia nos bichos, nas crianças, desrespeitava as idosas. No ar, a promessa: esse menino tem instinto ruim. Antes dos 20, Jorge morreu. O instinto ruim virou crack, fez roubar senhoras, levou-lhe para cadeia, consumiu sua vida, antes de virar homem.

Storyline IV
No número 1 só moravam velhinhas. Dona Nedi, Dona Maria, Dona Alzira, mãe de Jorge (o que morreu cedo). Dona Nedi morava no último andar, namorava um mecânico mais jovem, que lhe dava alegrias no horário do meio dia. Colocava as caixas de som na janela, vendia refrigerantes e cervejas que passava pela cesta. Dona Maria espichava cabelos a ferro e rezava doentes, vivia só e parecia uma índia. Dona Alzira era gorda, tinha um pastor alemão, um amante policial e cuidava do enteado que lhe fora confiado e que a vida/natureza(?) estragou.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Longo diálogo mental (III)

Não sei lidar bem com a passagem do tempo. Sei que estou melhor agora do que há dez anos atrás. Mas o tempo me açoita dia e noite. O tempo me diz que ele já está acabando e que preciso ser rápida se quiser ainda fazer o que não fiz. E não fiz muita coisa. Não porque eu sou preguiçosa, burra ou incapaz. Mas porque o que é fácil para um, é um monte intransponível de dificuldades para o outro. É fácil para muitas ter cinco amantes simultâneos. Para mim, é mais fácil trabalhar em três assuntos diferentes e escrever uma dissertação ao mesmo tempo. O amor para mim é uma dificuldade e seus trâmites são um mistério. A paquera é algo que não compreendo e não sei fazer. O tempo passou e não fui alfabetizada no vocabulário afetivo e enfim, temo que não possa viver aquilo que qualquer garota de 13 anos viveu. Ainda não sei nadar, não escalei montanhas, não fui amada e não sei andar de bicicleta. Sou fútil, carente, falo besteiras e tenho mais vestidos que eventos para ir. Nunca fui à Europa, nem pari a menina que sempre quis ter. Temo o tempo, as celulites, a esclerose múltipla. Temo a solidão que conheço bem - porque sempre sonhei, pelo menos por uma estação inteira ter companhia e receber flores. Quero tanta coisa e me esforço para fazer, para resolver. Tentei nadar, mas ainda preciso de uma mão carinhosa segurando a minha. Tenho 34 anos e não queria, não sem ter nunca sido esperada por alguém, nem sem ter vivido o verão que eu sempre ouvi falar e não tenho ideia como viver. Sou ainda uma menina que sonha ouvindo musicas românticas nas FMs. Mas o tempo me diz que já sou uma mulher madura, de meia idade e que a juventude já está indo embora. E eu não queria ter mais medo. Nem queria não saber como é doce o amor.

Longo Diálogo Mental (II)

A alegria é uma potência de mudança. É uma possibilidade de trampolim, apesar de todas as dores e irrefutável crueldade da vida. A alegria é revolucionária. Mas a alegria não  pode ser desculpa para superficialidade. Não pode ser miopia, nem indisposição para ver o mundo. A alegria não pode ser uma ditadura. Não quero encomendar sorrisos engarrafados. Nem fazer da gargalhada a única máscara viável do meu rosto.  Quero todas as nervuras e expressões que minha face pode ganhar. Quero o direito ao humor, mas também ao mal humor, a melancolia que me visita quando em vez. Quero o direito a todas as cores: a estridência do amarelo, a austeridade do roxo. Quero o direito a ser várias: alegre, boba, triste, entediada, entusiasmada. Duvido muito de quem tem só uma expressão e distribui lições de vida, comportamento e felicidade por minutos. E então, amigos e amigas, não me engarrafem, nem me leiam como se eu fosse uma coisa só ou precisasse dessa lição de alegria magnifica que você tem a dar. Por favor, poupem-me de me sentir um frasco de tinta, quando posso ser a palheta Pantone.

Longo diálogo mental (I)

I

Sim, Salvador está num período de profunda decadência. Não sei se está, ou sempre esteve. Estamos há quatro séculos de decadência, desde que o açúcar deixou de ser fonte de riqueza de toda região nordeste. Desde que deixamos de ser capital do Brasil. E se o baiano deixasse de se comparar com o carioca, ou achar que deveríamos ser como São Paulo, veria que quase todas as capitais do Nordeste e Norte são igualmente decadentes. Que a noite de todas as capitais brasileiras é bem menos movimentada que a nossa. Que as pessoas usinam em postes de forma indiscriminada. E que o trânsito é um horror. Eu sei, Salvador está difícil, pra mim também e dizer que a Bahia é linda não resolve nada. Mas também dizer por minuto que Salvador fechou resolve menos ainda. O mundo é uma grande província, com exceção das grandes capitais dos países, especialmente os da Europa que se tornaram bem grandes graças a exploração de continentes inteiros. Assim, poupem-me de comparar Salvador com qualquer capital européia - fomos colônia espoliada, roubada, nao explorador. Não fomos nós os divisores do roubo, mas o roubado. Poupem-me de ouvir que Porto Alegre tem gente bonita e até o gari é gato, em comparação a essa, que é a cidade mais negra fora da África. Se você que reclama por minuto não tem um projeto de mudança e de amor a essa cidade, faça um favor a você e a mim: a Itacimirim  tem na rodoviária ônibus saindo de hora em hora para o Sul Maravilha e apesar da alta das passagens aéreas, o cartão Gol parcela bilhetes em 36 vezes. Quem ficar aqui, nessa terra, no Nordeste, terceiro mundo sim, mas lugar de resistência e força que seja para lutar, pra fazer diferença. Reclamar, mas operar mudanças no raio onde atua.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Espelho de Clarice

Olhando para ela eu me reconheço numa versão dilatada. Ela me diz que é imperioso retirar as muitas camadas de cal que travestem o esquecimento que me forjo. E espelhada em suas linhas reconheço a mulher inquieta, aguda, áspera, medrosa e excessivamente carente. Somos interrogação marcada à ferraduras nas solas dos pés. Sobre nosso ombro direito pesa o mundo, oprimindo a musculatura, inflamando a carne. A dor daquilo que não pudemos mudar e daqueles que não pudemos salvar nos causam cólicas uterinas lancinantes. E silenciosamente a alma grita e para não morrer, jorramos palavra. Eu na minha mediocridade, você, em seu tempo, na sua genial e cruel abundância. E o mundo é cruel e desesperadamente buscamos a alegria apesar de.

Apologia do Não Saber

Cansaço de ter que ser inteligente. De saber porquê e ter que explicar, argumentar, contra-argumentar, definir, conceituar, questionar, ponderar, negar. Vontade de só responder: não sei. Porque nem sempre sei porquê, e se sei, nem sempre quero dizer. Explicar a tudo fatiga...fatiga tanto. E realmente, duvido que saiba tanto assim.
Cansaço de ser consistente. De pessoas permanentemente consistentes e profundas, que arrotam conhecimento. Cansaço de Deleuze, Nietszche e das bandeiras contra metafísica. Quero o colo de Deus, sua confiança e seus afagos. Quero pensar que tem alguém cuidando de mim, me protegendo. Quero, quero, quero Deus. Essa solidão da liberdade no meio da opressão do que não posso mudar me constrange. E a metafísica me consola porque sou mística, porque nada me faz mais feliz que um banho de arruda e o cheiro do manjericão.
Cansada de comida saudável. De boa música. Do que é "bom". Cansada, cansada, cansada mesmo da moça de óculos que inventei e dessa lua fatigante em Virgem. De ser crítica, auto-crítica e permanentemente insatisfeita.

A seca

A crueza da seca finalmente atingiu meus olhos com sua contundência radical. O cinzento das pastagens, o rio que não flui, a poeira que engasga o ar, a pele que emudece seu próprio suor. O verde esmaecido luta para ser bandeira, mas não consegue e pede "piedade, piedade, azul do céu sem fim". E engrosso o coro dos cipós retorcidos: "chuva, mulher espirituosa, faz misericórdia, cai sobre nós, enxarca a terra e promete-nos abundância". Ela fecha seus ouvidos, se faz de surda e segue sangrando os pés.
Nada mais triste que a negação da chuva, da umidade, do fluxo. A negação do rio - que não corre, que se evapora. O tempo parado pela poeira que sufoca. A terra e os pés cortados. A lágrima que não cai. A sede silenciosa e seca.

Dos azuis e do que os olhos não vêem

Ao cruzar de volta os morros azuis, inevitáveis saudades: aquele lugar me aponta um espelho d'água tão nítido, cujo movimento me desperta e desponta. Se de dia converso com as plantas e flores, me perco entre as rosas e sempre-vivas, bebo do suco doce da manga e da nudez nas águas do rio, de noite entonteço ante a escuridão, que me revela estrelas que não conheço, lança luz sobre a moça triste e acabrunhada - que a todo modo, tento ignorar a existência. Diante das lagoas escuras, cujo fundo não enxergo, a força incógnita das águas que não me revelam o que guardam ao fundo. A completa ignorância em torno da vontade dos homens. E diante daquilo que desconheço, a paralisia e a melancolia do medo. Nesse lugar sou a que sou: sensível, frágil, temente da noite, do desconhecido. Sou gentil, gosto do dia, amante da beleza e curiosa do profundo. Imaginativa e receptiva, mas medrosa e assustada. Aceito a bruxa que vive sob meus olhos. Aceito a minha missão de a tudo sentir muito. Aceito que o céu indiscutivelmente azul e o  vermelho gritante da estrada me sussurre aos ouvidos que não há ilusões. E que já não é tempo de Maya.