Depois da festa, voltava risonha para casa. Pão cheio de recheio saboroso, enrolado em papel manteiga. Rua vazia, muito vazia. Assim como ficam as ruas em dezembro depois das 20h. Todos se guardam nas festas de família, confraternizações. Ou protegem-se temendo os ditos gatunos, que ficam à espreita de 13° salários mínimos displicentes, perdidos em carteiras. Ao ouvir uma tosse longa atrás de mim, temi que fosse alguém assim, que estivesse em meu encalço. Não era um homem, era um garoto de poucos anos, no máximo 9 anos. Carregava uma dessas caixas de Natal, onde imaginei haver donativos. Ele tossia muito. Tranquilizei-me ao ver um criança. Mas preocupei-me por pensar que era tarde, ele estava sozinho.
E ele continuou a tossir, cada vez mais próximo. E olhei pra ele mais fixamente, deixei que ele caminhasse ao meu lado.
"Que foi, tia? Tá com medo?"
"Não, tô vendo você tossindo demais. Tá tudo bem?"
"Tá sim. A senhora tá com medo?"
"Não. Se estivesse tinha andado correndo e tô aqui do seu lado. Por que você está sozinho a essa hora? Onde você mora?"
"Moro nessa mata aí da frente. Tô indo dar a volta para subir"
"Nessa mata? É mesmo?"
"É sim. Outro dia um homem tentou me estuprar. Eu empurrei ele, pedi para me deixar em paz. Você quer dormir lá comigo? Para eu não ficar só"
Até agora, não sei o que responder. Não sei, não sei, não sei. Não pude e ainda não posso dizer nada consistente àquela criança.
"Eu...eu tenho que ir para minha casa"
"Tá bom. Tudo bem".
"Olhe, tome isso aqui. Você quer?"
"Quero sim"
"Você aguenta levar?"
"Levo sim. É doce de uma festa? Festa de aniversário"
"É um pão salgado. De uma festa sim"
Não nos despedimos. Ele seguiu carregando a caixa e a bandeja. Ainda sinto como se um trem tivesse passado por mim. Por cima. Não sei se era verdade. Se o garoto fora violado por um adulto estúpido. Se ele vive sozinho naquela mata, guardado pela própria sorte. Não sei... mas se era sua imaginação de criança, ainda assim, era uma imaginação muito nutrida por coisas trágicas. Por imagens de dor grandes para uma criança imaginar simplesmente.
Digam-me. O que se faz.
Para além das minhas sentimentalidades e poesia ruim. Um lugar de compartilhamento de percepções, em prosa clara – em tentativa. Crônicas e comentários sobre esse meu lugar de fala de mulher negra, feminista, artista, cínica e aguda. Quero fazer aqui pontuações sobre observações extraídas do cotidiano. Com ou sem poesia. Mas nada impede, que em paralelo, a Mônica sentimentalista, que escreve sobre seu umbigo dolorido, se manifeste na lírica. Convivemos todas.
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que coisa mas bela-e-triste. essa violência que nos ronda e da qual somos todos vítimas, em alguma medida. o que se faz já está feito. você deu evidência e contorno e forma a esse discurso desconcertante, que a gente evita a todo custo escutar, para que nossa cumplicidade com a violência não nos grite, nem nos persiga tossindo. sua linda.
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