domingo, 23 de novembro de 2014

Outra coisa

Alguma coisa fechou, acabou, feneceu, rompeu, desfez, dissolveu da noite dormida para acordada. 
Alguma parte do peito dela que aspirava, sonhava, clamava, queria, pedia pela aparição, sorriso, presença, mão dele aceitou mansamente, resistindo, inconformada que não viria.
Ele não viria. Ele não queria. Ele era de outra coisa, pessoa, vontade, verdade, tempo. Dela ele não queria ser. Não era. 
E todo aquele amor que ela alegre cultivava murchou com o tomateiro. 
E das lágrimas que rolaram naquela madrugada nasceram desenhos, poemas, pães, saudades, tristezas, outros desejos, memórias.
E todo aquele amor amanheceu outra coisa. E ela já era também outra. 

Carta (I)

Prezada Leonora,

Escrevo-te porque embora a distância e as poucas palavras, preciso lhe falar. Recebi notícias suas por Marta. Fiquei alegre de saber que conseguiu bom cargo na fábrica e que você é Genesio prosperam muito. Digo-lhe que acho tão admirável o bom encontro que a vida  concedeu: este amor nos tempos de primavera, dotado de poesia e gentileza. Vocês são árvore florida no fim de tarde, brilhando o dourado das últimas horas do sol.
Escrevo-te acima de tudo porque ocupo por hora seu antigo quarto, que aluguei com os móveis dentro, nas mãos de Josefa. Pago um valor muitíssimo bom e justo. A localização tão desejada, a ventilação adequada e a vista para praça são tão aprazíveis, que me fazem amar enormente o lugar. 
A querela é que Josefa não me permite retirar seus pertences do armário, nem as fotos da parede. Preciso de sua autorização, sabe bem? Não vejo como poder estender minhas roupas no armário ou pregar minhas fotos e pequenos quadros na parede. O fato é que o quarto ainda não é meu. Ainda é seu, Leonora.
E seria simples não fosse eu essa alma sensível: suas fotos dizem da altivez que não tenho. Dizem dos meus olhos enterrados no chão. Das minhas mãos tremulas. Da minha mudez diante da sua presença austera e delicada nesse quarto. 
Leonora, saiba, minha admiração é grande, embora suas roupas no armário pareçam merecer mais aquele espaço que o meu. Meus vestidos meio rotos, meio desbotados ainda se encolham na mala.
Sinto uma vergonha grande, porque minha intimidação é tão funda diante da herança que herdei de seu quarto, que não consigo lutar por ele diante de Josefa. Leonora, se habita outra cidade e se não lhe parecer desacordo, autorize minha instalação por completo.
Leonora, compreenda: vivo num concurso de Miss que já perdi, mas por algum motivo não abandono. Leonora, peço desculpas as palavras tortas, tontas, em fuga.
Leonora, obrigada o carinho de sempre.
Cordiais saudações,
Mirtes.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Sobre o tempo.

Sou toda urgências. Nesse tempo em que só o que importa é para depois.
Sou inteira pressa. Nesse tempo em que descansar é quase uma vergonha.
Sou completa produtividade. Nesse tempo em que o ócio é ostentação.
Sou absoluto ruído. Convoco o silêncio.
Sou frêmito. Evoco a parada.
Sou tumulto. Persisto estacada diante da solidão.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Reparos poéticos

Li uma matéria sobre o despertar do olhar. Perceber o cotidiano perdido sobre a poeira das tarefas. Mas também evocar a capacidade de reparar nas coisas: porque passamos a olhar o mundo pelas câmeras dos nossos celulares, pelas fotos toscas que fazemos para o instagram, selecionando filtros para realidade.
A matéria me despertou a vontade de reparar o meu domingo. E disso saiu isso aqui:

- A minha amiga que cresce comigo
Desde os 19 anos sou amiga de Lisavietra. Amiga para quem não tenho vontade de expressar meus pensamentos mais absurdos, mais mesquinhos. Porque sou mesquinha - embora não queira. Sou medíocre - embora não queira. Gosto de poder ligar para Lisa e falar absurdos e ser acolhida. Gosto de ser amiga de Lisa e de ver que somos loucas em cooperação mútua.

- As flores devolvem a serenidade que não tenho em abundância
Gerberas, margaridas e rosa. Espalhei pela casa. Elas preenchem tudo de colorido e combinam com o verde igualmente espalhado pelos cantinhos do ambiente. As flores me preenchem de alegria. Uma alegria sem propósito. São um afago que me dou. Coloquei as rosas diante de minha Yemanjá e minha Maria. E de algum modo presenteio o feminino, essa amorisidade em forma de imagem. E a ansiedade que me faz cativa em muito tempo, aplaca-se. Sou também flor serena ante aquelas flores.

- O cheiro de tempero na sala.
Dendê é meio doce, ainda mais misturado com leite de coco, cebola frita, azeite doce. Dendê preenche de cor a panela. De perfume a casa inteira. E aquele cheiro bom me leva para algum lugar afetivo onde sou mais mocinha. Mais delicada. Sou mais de panelas que de afagos.

- O beijo
Beijar suspende os pensamentos. Beijar promove um raro estado de presença. Porque meus pensamentos me roubam sempre para algum lugar outro. Não quando beijo. Beijar alegremente me faz contemplar o presente e a entrega.

- O canto
Cantei tanto e tanto. Plenos pulmões e uma entrega só possível na solidão. E a música me transportou para os 14, 18, 20 e poucos anos. E ainda tenho o muito que tinha, só que sou mais leve, mais alegre e menos melancólica. Sou mais risonha e menos sisuda. Rio de mim e não tenho grandes expectativas. E acho minha desafinação engraçada. Não preciso agradar ninguém.

- As formigas
As formigas são mais donas da casa que eu. São sim. Se apossam de tudo em franca velocidade. As formigas andam em caminho fragmentado, meio confusas, mas não menos obstinadas. Elas são velozes. E atravessam toda e qualquer barreira, convocando as demais em extrema solidariedade. Tento me livrar delas. Sou um pouco como elas.

- Mocinha
Com o tempo aceitei que sou mocinha - daquelas que se perfumam e esperam o moço. Embora seja dessas moças aguerridas, cheia de discurso sobre qualquer coisa, sempre aguardo ansiosamente o momento de ser dominada. E descobri que há uma espécie de libertação em ser tantas camadas de feminino. Ser Oiá no trabalho. Oxum no quarto. Yemanjá na sala. E que todas elas sejam.


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Da dispersão necessária

De repente, eu que sou toda das palavras, perdi. Porque parece que as imagens se tornaram mais pungente. Talvez porque escrever obriga a racionalizar. E explicar nem sempre é bom. Especialmente quando não se sabe, nem se quer definir rotular nada.
Sinto cheiro das flores aqui de casa. A roseira caiu pela janela. Está despedaçada. Ela. Eu não. Eu sorrio. E desenho coisas. Menos do que as imagens que jorram sob meus olhos.
Sinto peso e cheiro. Disfarço trabalhando. Racionalizo o trabalho para não racionalizar o que sinto. E aquela dispersão vai se aquietando. E fico um pouco trêmula: porque enquanto estou dispersa, sou mais forte.
Mas a fragilidade é necessária. Consentir. Assentir. Sentir. Tudo isso é necessário.
Mas prefiro não rotular. Não sinto nada ainda.
Prefiro só sorrir.
Ponto parágrafo.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Amor de muitos

Pagas duas parcelas de credito da paixão de julho, posso dizer agora que o encanto acabou. Na medida em que aquele encontro virou dividas. Na medida em que o príncipe não era de palavra tão bem dada assim.  Pagas as parcelas da paixão de julho, em setembro brotam outras flores. Sou outra moca, tanto que nem mais reconheço direoto. agradeço ao amor de maio, junho, julho.

Todos eles deram semente para outra arvore nascer em mim. 

Ora pois, o amor se faz somando muitos. Encantos, desencantos, presentes dados, lagrimas e descobertas de tantos outros gozos.

domingo, 7 de setembro de 2014

Flor das horas presentes

Há dias à flor da pele sem saber ao certo. Porque, por vezes, a pele em flor não é espinho, rusga, rasgo. À flor da pele pode ser também percepção das coisas, dos aromas, do vento frio, das texturas quentes, da audição que se aguça. Ando à flor da pele, puro riso. Noto as rachaduras na perna, percebo os engasgos, mas tudo é de atenção - o presente é nestas horas. Estou nele, cheirando a verbena e rosa. Com hálito de chocolate e desejando o mundo. Logo os jasmins florescem nas janelas e o futuro não se faz susto. Porque das poucas vezes na vida, estou no presente.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Parágrafo Final

Tenho o dom de provocar fins. Mais um enuncia no fim da página. Já escrevo para lembrar: devo esquecê-lo. Das obrigações da vida: apagar mentalmente quem nos ignora previamente. Sou muito boa em ser ignorada. Crio situações para falar sozinha. Receber costas viradas. Portas batidas, palavras não ditas. Sou mestre em apegar-me a quem me presenteia com silêncios diante de minhas perguntas. Mais um fim construí. Agora apago mensagens, números, fotos trocadas, expectativas construídas. Desejo que esteja enganada, mas não me engano com fins. Esse chegou e já anoto na agenda: devo esquecê-lo. Não sou boa nisso, mas escrevendo dez vezes, cumprirei essa tarefa: gosto desse rapaz e devo esquecê-lo. Mais um fim se anuncia. E o telefone não vai tocar. Fim.

domingo, 13 de julho de 2014

Quando uma alma reconhece outra

Pensei que tinha endurecido. Mas não. Não endureci. Não fiquei amarga. Tenho umas marcas, uns medos paralisantes. Penso sempre que não vai dar, que não vai ser, que a pessoa não estará lá. Penso toda sorte de coisas sórdidas, alimentando de fato uma pouca crença. Mas você me apareceu como a esperança sorrindo: não deixei e acreditar em nada. Sou ainda sonhadora, romântica e boba. Diante do seu sorriso, ainda de menino, perco 20 anos e volto aos 15, quando eu já era descrente. 
E não sei. E as lágrimas são tantas, mas não é dor. É um contentamento que não se contenta em sorriso: por isso, choro. Não sabia que podia ainda me encantar. Não sabia que podia ser aquela moça que sorri de doçura. Você me devolveu esse direito de sentir as pernas tremulas. De dormir suspirando. De sonhar com coisas que me pareciam improváveis. 
E o futuro é só incerteza. Mas esse instante é tanta alegria. É tanto reconhecimento de uma alma paga outra... Enfim, enamorada. 

domingo, 22 de junho de 2014

Ponta de lança

Nem miraram lança em meu peito e já choro de soluçar as memórias da vida toda e seus cortes. Já soluço todos os nãos que fizeram o traçado de minhas mãos. Soluço de estremecer até embalar meu sono. Soluço até me cortar e efetivamente ter uma dor na carne. Até a ameaça da lança ser o suficiente para que tudo em meu rosto seja lágrima. 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Lavadeiras ou do tempo que não passa

Assusta-me pensar o quão o tempo passou pouco nas bandas da terra onde nasci, assim como para as pessoas de tez mais escura que ergueram esse chão. O tempo parece estagnado e suspenso ainda nas horas barrocas - contradições explícitas e abundantes, retorcidas nos corpos e nos ares. 
Nas ladeiras, casas pequenas de antigos garimpeiros, homens endurecidos descem e sobem falando com algo que não se vê. Mulheres oram expulsando inimigos. Igrejas se espalham em cada esquina, sejam elas de cruzes, sejam elas de pastores.
Quase todos os que moram e pouco têm, pretos são. Quase todos que vêm de fora, conquistam mais, brancos são. Lei antiga que muda pouco. Já não brotam diamantes das pedras, alimentando sonhos de mudança, nem mais podem os homens garimpar em busca da riqueza e promessa de vida nova.
O tempo - mais veloz que folhas em queda, de mudanças mais bruscas que as trombas d'água, que quando em vez, alteram a ordem da natureza - parece não ter se alterado, pelo contrário, ainda em suspenso, instala-se nas trouxas de roupas que as negras mulheres carregam sobre a cabeça e equilibram na descida até o rio. E nas mãos lavam peça a peça, secando sobre as pedras.
Uma imagem entre poética e triste: ainda se sustenta família, lavando-se roupas no rio. E há que se suspirar, pois há famílias que pagam outrem para lavar suas próprias vestes, ainda não uma máquina.
O tempo segue estático tanto quanto as pedras ardósia. O tempo permanece, assim como a malemolência dos corpos das negras lavadeiras. Como a rigidez dos que já não garimpam e vivem de tempo. 

A louca

Algumas vezes faz-se necessário acalmar a louca interior. Fazer compressas e colocar sobre sua testa febril. Dar-lhe doses grossas de xarope. Segurar sua mão, enquanto tenta dormir. A louca quer sair. Ela treme de frio, enquanto ri e faz profecias, que ninguém deseja ouvir. Não há que se lutar contra a loucura: ela subjaz sob a pele, é expelida tal qual suor. A loucura é a única coisa que é. Pinguei óleo essencial me um copo d'água e fiz com que bebesse. Deixei que a louca chorasse um pouco as dores de nada que é, mas apenas do medo que fosse. Esperei que soluçasse e depois de mais água, a louca assentiu - não faço o menor sentido. Posso continuar a ser doce. E a não fazer sentido algum.

domingo, 25 de maio de 2014

Despertamento

E coberta por suores d'outrem, alguém desperta. E reconhece: sou. Toda carne que se treme por debaixo deles é. Unidos: mente, corpo, alma e aquilo que se afirma gênero. E ri da subserviência que traveste no ambiente do quarto. Ri grata pelo despertar das últimas manhãs: algumas horas mais tarde, sob o vento e o sol fervente das 11 horas.
A cor dava vida revolvida líquida. E grata, desperta, sorria contente: fora pessimista, mas ainda era macia e nada abandonará. Nada nada, tudo estava ali. Esperando apenas a coragem de ser mais que mente. Corpo risonho na potência de seus orifícios. Ser mais que mente: ser corpo em gargalhada, cabeça para trás, trêmulo na alegria de se saber colorido. A cor dei.

domingo, 27 de abril de 2014

As alegriazinhas

Queria escrever alegriaszinhas. Pois as tenho. Nas tardes, nas manhãs, nas noites. Sou bem alegre. Mas quando silente. Quando diante da tela branca, do papel sem pauta definida. Não há nenhum som que não o velho lamento. A saudade antiga da moça que poucas vezes fui e há muito já não sou.
Queria escrever coisinhas delicadas, as quais as pessoas se identificassem. Provocar respiro, suspiro, boa esperança. Mas fracasso nessas tarefas. Sou bem sucedida em transcrever as horas de tédio. Só dele quem sei.

Abandono

Coisas abandonadas: a escrita, o sonho, o corpo, o desejo, chocolates, o risco. Abandonei-me. Pelo simples não crer. Creio que desisti.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Lembrete

Sensação mais hoje que em outros dias de que estou mais criativa que no mês passado. Agradeço a visita da lembrança dos talentos que posso ter. Porque nem sempre lembro. Me acomodo e fico quieta cumprindo as tarefas. Esqueço muito de mim. Mas hoje lembrei. E agradeço por lembrar.
Ontem lembrei também que sou uma moça triste. Profundamente triste. Que luta para caminhar mais firmemente e acreditar que tudo pode. Profundamente triste por nesse tanto tempo, ainda não ter encontrado alguma mão que lhe ajude a ter confiança. Não gostaria de ter lembrado dessa parte.
Há lados em que posso tanto. Outros em que consigo tão pouco. E tudo sou.