segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Reparos poéticos

Li uma matéria sobre o despertar do olhar. Perceber o cotidiano perdido sobre a poeira das tarefas. Mas também evocar a capacidade de reparar nas coisas: porque passamos a olhar o mundo pelas câmeras dos nossos celulares, pelas fotos toscas que fazemos para o instagram, selecionando filtros para realidade.
A matéria me despertou a vontade de reparar o meu domingo. E disso saiu isso aqui:

- A minha amiga que cresce comigo
Desde os 19 anos sou amiga de Lisavietra. Amiga para quem não tenho vontade de expressar meus pensamentos mais absurdos, mais mesquinhos. Porque sou mesquinha - embora não queira. Sou medíocre - embora não queira. Gosto de poder ligar para Lisa e falar absurdos e ser acolhida. Gosto de ser amiga de Lisa e de ver que somos loucas em cooperação mútua.

- As flores devolvem a serenidade que não tenho em abundância
Gerberas, margaridas e rosa. Espalhei pela casa. Elas preenchem tudo de colorido e combinam com o verde igualmente espalhado pelos cantinhos do ambiente. As flores me preenchem de alegria. Uma alegria sem propósito. São um afago que me dou. Coloquei as rosas diante de minha Yemanjá e minha Maria. E de algum modo presenteio o feminino, essa amorisidade em forma de imagem. E a ansiedade que me faz cativa em muito tempo, aplaca-se. Sou também flor serena ante aquelas flores.

- O cheiro de tempero na sala.
Dendê é meio doce, ainda mais misturado com leite de coco, cebola frita, azeite doce. Dendê preenche de cor a panela. De perfume a casa inteira. E aquele cheiro bom me leva para algum lugar afetivo onde sou mais mocinha. Mais delicada. Sou mais de panelas que de afagos.

- O beijo
Beijar suspende os pensamentos. Beijar promove um raro estado de presença. Porque meus pensamentos me roubam sempre para algum lugar outro. Não quando beijo. Beijar alegremente me faz contemplar o presente e a entrega.

- O canto
Cantei tanto e tanto. Plenos pulmões e uma entrega só possível na solidão. E a música me transportou para os 14, 18, 20 e poucos anos. E ainda tenho o muito que tinha, só que sou mais leve, mais alegre e menos melancólica. Sou mais risonha e menos sisuda. Rio de mim e não tenho grandes expectativas. E acho minha desafinação engraçada. Não preciso agradar ninguém.

- As formigas
As formigas são mais donas da casa que eu. São sim. Se apossam de tudo em franca velocidade. As formigas andam em caminho fragmentado, meio confusas, mas não menos obstinadas. Elas são velozes. E atravessam toda e qualquer barreira, convocando as demais em extrema solidariedade. Tento me livrar delas. Sou um pouco como elas.

- Mocinha
Com o tempo aceitei que sou mocinha - daquelas que se perfumam e esperam o moço. Embora seja dessas moças aguerridas, cheia de discurso sobre qualquer coisa, sempre aguardo ansiosamente o momento de ser dominada. E descobri que há uma espécie de libertação em ser tantas camadas de feminino. Ser Oiá no trabalho. Oxum no quarto. Yemanjá na sala. E que todas elas sejam.


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