De como eu fui descobrindo meu black, nessa descoberta de como cuidar do cabelo e tomar poder. |
Desde muito cedo, entendi que meu cabelo era alguma espécie de problema, a ser tratado com severa atenção. Minha mãe me deixava no salão, para que fossem feitos os procedimentos e ia para seu trabalho. Meus cabelos sempre foram muito muito cheios. E as cabeleireiras olhavam com extremo desgosto. Bem como as demais clientes, que pediam para passar na frente, pois meu cabelo iria demorar.
Primeiro foi o ferro. Que fedia. Queimava meu coro cabeludo e as orelhas. Mas deixava meus cabelos soltos e eu podia correr com eles. Depois foram os alisantes, os permanentes. Que igualmente fediam, machucavam meu couro cabeludo e me permitiam soltar o cabelo por um tempo. Havia as tranças. Eu não gostava porque elas apertavam meus cabelos, esticavam meus olhos e levavam diariamente 30 minutos de preparo.
Aí veio o corte curto e com ele deixei de ser menina. Virei uma entidade estranha. Pouco atraente e feminina. Mas era prático. Especialmente para quem não tinha dinheiro para os alisantes. E aos 15 anos, o advento dos permanentes afro e o sonho dos cachos ao vento. Os umidificadores, ativadores de cacho, massagens. Me sentia quase uma negra americana, com cabelos incríveis.
E aí os lapsos de tempo, meio esquisita, entre o cabelo de química e o indesejável cabelo natural. Não havia capital para atender às demandas constantes de produto, nem manter aquele cabelo incrível. Então, vinha o escárnio, as piadas, os comentários maldosos: "ela é ridícula com esse cabelo". E não sabia que os colegas do grupo religioso comentavam às gargalhadas sobre meu cabelo estranho. E ficava entristecida porque o menino que eu gostava no final da adolescência enfatizava que mulher precisa ter "cabelão".
Escravizada pelos alisantes, permanentes, defrizantes, escovas, eu vivia oprimida por passadeiras, lenços, grampos e o temor constante do corte químico. Eu ficava bonita de três em três meses, seis em seis meses. E tinha um pesar de ter nascido assim...com um cabelo que todos e eu própria, consideravam ruim.
Até que, depois de ver, tantas meninas que eu considerava bonitas, aderindo às tranças com apliques, considerei a possibilidade de utiliza-lo. E algum clique deu em mim. E pela primeira vez na vida me considerei bonita. E bastante negra - até então eu não tinha certeza, porque não sou uma negra que as pessoas afirmem sem eufemismo - e isso me delimitou um lugar novo até então: uma espécie de aceitação se firmou em mim.
Quando chegou a hora das tranças serem trocadas, sozinha no quarto, peguei a única tesoura da casa, um tanto cega e com um espelho fui cortando o comprimento cheio de química. E depois de anos descobri como era meu cabelo mesmo. Eu já não lembrava desde a infância. O que veio a seguir foi uma insegurança, misturada com uma afirmação e a busca de força para lidar com as perguntas "O que você vai fazer com esse cabelo? Parece uma pessoa desmazelada", "Você não quer dar um relaxamento", "Precisa fazer algo com esse cabelo". As expressões de desagrado da minha família passaram a ser algo a conviver. Aos poucos encontrei uns jeitos de fazer tranças de dois, eventualmente novos apliques, até que um amigo disse "Você seria muito mais bonita se aceitasse seu black mesmo. Você vive disfarçando".
Ele era branco. Ele falava uma verdade que nem eu sabia. Eu ainda disfarçava. E muito. Parei de enrolar de dois. Fazer coquezinhos. Há anos desisti de qualquer química e encontrei um eixo de entendimento do lugar político da minha escolha estética. Entendi que meus cabelos são uma zona de afirmação: sou acintosamente negra. E sinto no meu cabelo cheio, que abre a cor das pontas a cada verão, o que faz de mim, uma sarará - termo ressignificado por Gilberto Gil - minha força. Minha beleza, minha definição de um lugar de estar no mundo.
Definição essa que já me rendeu o espanto de um amante branco, que nunca estivera com uma mulher negra "Meu Deus, como seu cabelo é macio". A pedrada carregada de xingamentos de um garoto negro. A evocação por "Xica da Silva" nas ruas de Buenos Aires. Orientações atenciosas de rapazes negros nas ruas do Rio Vermelho "Ninha, você gostosa, mas alisa esse cabelo, mãe". Já ouvi muita coisa nessa vida. E hoje, consigo não me importar. A minha escolha estética não é unânime. Só é política. E isso já é muita coisa.
Uma criança do final dos anos 70, com cabelos fartos em laços de fita.
Algumas produções interessantes sobre o tema:
"Americanah", romance de Chimamanda Ngozi Adiiche, que fala de muita coisa: racismo, amor, padrões de beleza, países emergentes...mas especialmente de cabelo e o seu lugar de opressão e empoderamento na vida de uma mulher negra. Um deleite.
"Sem perder a raiz - Corpo e cabelo como símbolo da identidade negra", tese de doutoramento de Nilma Lino Gomes. A pesquisadora percorreu salões de beleza, com especializados em cabelos crespos, em Belo Horizonte e observou esses espaços como ambientes de sociabilidade, compartilhamento e fortalecimento das mulheres negras.
Dois virais fresquinhos da internet:
A Campanha Francesa da Dove sobre as crianças e a importância da aceitação dos cachos:
O site americano Cut fez um vídeo demonstrando as várias mudanças negras ao longo dos últimos 100 anos
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