terça-feira, 20 de novembro de 2012

Nariz

Eu tinha uns oito anos e minha mãe me levou para ver meu pai, na oficina mecânica dele. Não gostava de ir lá. Além de achar meu pai meio chato, a oficina era bastante suja, com um monte de geladeiras empilhadas, empoeiradas, sujas de graxa e tinha uns posters clássicos de mulheres nuas na parede. Não, eu não gostava daquele lugar e passar por ele foi o meu tormento até os 20 anos de idade.
Numa dessas vezes, meu pai deu uma das poucas orientações na vida. Mas ele deu uma das mais perturbadoras. Meu pai é um homem negro, sem traços de mistura. Nariz largo como a maioria de nós. Assim, ainda garota, ele sugeriu que todas as manhãs eu fosse até o espelho e apertasse as narinas, para não ficar igual a ele. Não, eu não achava o nariz do meu pai bonito (até porque ele ficou meio bagunçado por um acidente numa partida de futebol). Assim, a ideia de ficar com a cara igual a dele não me agradava nem um pouco.
Todas as manhãs, ia para o único espelho existente na minha casa e apertava, apertava, apertava o nariz, pedindo para que ele ficasse um pouco mais estreito. Só um pouco. Ritual que se repetiu até os 13, 14 anos. Obviamente sem grandes sucessos - que bom.
Não, na minha casa e na minha infância não havia nenhum fiapo de orgulho ou consciência racial. Ninguém se afirmava negro. Mas tinha um discurso geral de quem escapa de branco, preto é. A palavra escapa me trazia certo incômodo: por que escapa? Cedo aprendi que meu cabelo era ruim. Aprendi que as meninas brancas (ou que pareciam brancas) eram bonitas e eu poderia ser no máximo inteligente (título que me dediquei a manter e me dedico cotidianamente. Aprendi que tinha que dar ferro nos cabelos, ainda que queimassem meu coro cabeludo e que seria casar com alguém branco para limpar a barriga.
Na adolescência todos os meninos negros da sala atormentavam o menino negro de tez mais escura, chamado "cores neutras". Os avermelhados e achocolatados não se reconheciam nele e ficavam bem à vontade para deixa-lo sempre à margem. Eu estranhava tudo aquilo, porque não via diferença entre eles, entre mim. Mas era covarde o suficiente para permanecer calada.
Eu sabia quem eu era, de onde vinha, mas sentia que não podia falar. Nem tinha estímulo. Na primeira vez que com 20 anos falei, "eu sou negra" fui questionada. Era óbvio que eu não era. Que eu era morena, parda,  sarara, qualquer coisa parecida com isso. E eu me achava frágil e fraca de mais para ser negra. Mas passei a insistir. E a insistir, até que deixaram de negar, até que eu perdi a vergonha. Até que aceitei e passei a cultivar alegria, orgulho. E agora sinto que não poderia ser outra coisa e essas dificuldades fazem parte de mim. E agradeço pelo caminho não ter sido fácil.

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