domingo, 29 de dezembro de 2013

Todos os olhos

No metrô, distraio-me dos olhos do senhor que me examina atentamente. Incansavelmente o senhor me observa. Distraio-me de distrair-me e curiosa observo pelos espelhos frente. Ele quase aproxima seu rosto do meu. Olha mãos, braços, rosto, sapatos. Toda aquela inquirição me afronta.

Novamente me distraio para não ser afetada. "Sou turista. Devo ser uma pessoa leve." Outra estação, moço de barba bonita, óculos de Fellini. Tanto me observa que senta ao meu lado. O cheiro forte de álcool às 15:00 no Centro da cidade rompe com qualquer possibilidade de desejo. E percebo a inoportuna observação dele sob as lentes dos óculos escuros. 

Repasso na mente o que visto: camiseta branca, bermuda jeans até o joelho, sapato preto branco. "Definitivamente não estou irresistível". O que há de espantoso em mim?

Já diante das portas de saída, uma mulher me assiste e balbucia palavras. Encara meus sapatos e pronuncia algo que tento ler. 

Respiro aliviada. Meus sapatos são realmente bonitos.

Banho de Rosas

Peguei duas rosas vermelhas, despertarei na água fervente. Coloquei cravo, canela, essência de ylang-ylang. Fechei os olhos e pedi o despertar de uma energia que vi poucas vezes na vida. De uma moça sorridente que já soube ser. Banhei o corpo, a fronte. Pedi que as energias bonitas de vida e terra voltassem para meus pés. E desde então, deparo com a morte de tudo aqui que pedi. Tudo morrera há tanto e tanto tempo, que dias passados do banho, dos pedidos de fé, reconheço que meu pedido é impossível. Há tantas mulheres mortas dentro do meu peito, abortos não expelidos nesse útero inutilizado, que não há vida possível em mim. Estou morta e não há rosa vermelha que me devolva o viço. 

domingo, 22 de dezembro de 2013

O garoto

Depois da festa, voltava risonha para casa. Pão cheio de recheio saboroso, enrolado em papel manteiga. Rua vazia, muito vazia. Assim como ficam as ruas em dezembro depois das 20h. Todos se guardam nas festas de família, confraternizações. Ou protegem-se temendo os ditos gatunos, que ficam à espreita de 13° salários mínimos displicentes, perdidos em carteiras. Ao ouvir uma tosse longa atrás de mim, temi que fosse alguém assim, que estivesse em meu encalço. Não era um homem, era um garoto de poucos anos, no máximo 9 anos. Carregava uma dessas caixas de Natal, onde imaginei haver donativos. Ele tossia muito. Tranquilizei-me ao ver um criança. Mas preocupei-me por pensar que era tarde, ele estava sozinho.
E ele continuou a tossir, cada vez mais próximo. E olhei pra ele mais fixamente, deixei que ele caminhasse ao meu lado.
"Que foi, tia? Tá com medo?"
"Não, tô vendo você tossindo demais. Tá tudo bem?"
"Tá sim. A senhora tá com medo?"
"Não. Se estivesse tinha andado correndo e tô aqui do seu lado. Por que você está sozinho a essa hora? Onde você mora?"
"Moro nessa mata aí da frente. Tô indo dar a volta para subir"
"Nessa mata? É mesmo?"
"É sim. Outro dia um homem tentou me estuprar. Eu empurrei ele, pedi para me deixar em paz. Você quer dormir lá comigo? Para eu não ficar só"
Até agora, não sei o que responder. Não sei, não sei, não sei. Não pude e ainda não posso dizer nada consistente àquela criança.
"Eu...eu tenho que ir para minha casa"
"Tá bom. Tudo bem".
"Olhe, tome isso aqui. Você quer?"
"Quero sim"
"Você aguenta levar?"
"Levo sim. É doce de uma festa? Festa de aniversário"
"É um pão salgado. De uma festa sim"
Não nos despedimos. Ele seguiu carregando a caixa e a bandeja. Ainda sinto como se um trem tivesse passado por mim. Por cima. Não sei se era verdade. Se o garoto fora violado por um adulto estúpido. Se ele vive sozinho naquela mata, guardado pela própria sorte. Não sei... mas se era sua imaginação de criança, ainda assim, era uma imaginação muito nutrida por coisas trágicas. Por imagens de dor grandes para uma criança imaginar simplesmente.
Digam-me. O que se faz.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

11/12/13

Acordo de um sono pesado. Precisei de Dramin para dormir sem interrupções. Perdi a natação. Perdi o horário. Não pude levantar. O peso do corpo era por demais grande. Fiz ligações de trabalho ainda deitada. Mandei emails ainda deitada. A cabeça frenética. O corpo imóvel. Antes de levantar, nas redes sociais a foto da mulher branca e suas servas escuras sob a chuva. Outra foto de um homem negro, machucado, despido e acorrentado numa cadeira. Roubara um frasco de desinfetante. Imagens do século XIX, que parece não ter fim na terra brasilis. 
Trabalho e reconheço que sou desconfiada demais. E essa desconfiança retira minha possibilidade de leveza, atravanca os encontros que a vida poderia me trazer. O medo do machucado que impossibilita de se ter a potência da vida. 
E no meio da tarde, leio o desabafo de um rapaz que por segundos sobreviveu de ter sido imprensado por um ônibus. Porque o trânsito expressa a selva em que vivemos, a sordidez que faz com que uma máquina maior torne um homem mais poderoso do que outro. A sordidez que faz com que a pressa das máquinas seja mais valiosa do que o direito de ir e vir de pedrestes e ciclistas.
E todo esse dia me tornou um pouco oprimida. Embora nada nada tenha me ocorrido. A vida me seguiu boa. Mas estranho a estranheza disso que é ser humano. Esse mal latente, disfarçado. E reconheço no ônibus que não somos irmãos. Sem os laços do afeto...não somos. Talvez seja um erro. Talvez haja mais beleza nas relações - porque de fato há. Sou mais afagada do que repelida. Sou mais gentil que áspera. Rio mais que choro. 
Preciso manter alguma esperança nisso que se constitui a humanidade.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Minha disritmia

Uma alegria contente, quase ensurdecedora de tão estridente samba por cima do peito. 
Razão nenhuma. 
Apenas o deparar-se com o riso de alguém cujo meu riso gostou. 
E cair do dia de sol, sob som de metais, cordas e batuques, atiça a vontade de alterar as coisas. 
De que as coisas permaneçam impermanentes e que o movimento seja a única tônica
E os quereres que não cessem
E descompassadamente quero aquele do riso.