sábado, 29 de setembro de 2012

Latência

Dias que no meio de uma gargalhada, a tristeza latente aponta e diz, "estou aqui e vou me deitar
Vou pousar sobre seus olhos e dormir dentro de sua boca.
Me encolher entre seus dedos e fazer de seu peito minha morada tranquila"
A tristeza se enroscou entre meus pés, embaraçou os fios dos meus cabelos.
Sentada olho o céu depois da chuva. Tomo meu café sem cafeína.
Rezo um terço para distrair a mente e esperar que eu me esqueça que sou uma moça profundamente triste.
Embora consiga acessar a alegria, quando ela me visita.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Misoginia que nos une

Embora todos, todos nasçam do nosso ventre, há em cantos do mundo, aqueles que não dirijam sua palavra a mulheres. Há os que acham nosso rosto imoral, cobrindo com véus, impedindo a mobilidade do nossos corpos com longos vestidos fechados e pesados. Há os que extirpam a capacidade das nossas vaginas sentirem prazer, mutilam e maculam para sempre nossos corpos. Há os que condenam nossos cabelos. Há ainda os que violam nossos corpos, transformando-nos em objetos. Do lado de cá há os que pensam que somos atrativo para vender cerveja e decorar cenário de programa humorístico. Há os que não nos querem amamentando em público, se nossos seios não forem como as das modelos da revista masculina. O medo tremendo que sentem de nós, imputa-lhes ódio. Ódio tremendo e nos ferem de toda forma, tolhem a liberdade de todo o jeito. E há os que perguntam por que lutar por direito? Não já foi tudo feito?

Em algumas tribos de países africanos em guerra, o estupro tornou-se um dado banal. Agravado pelo fato de que a mulher violada é considerada como amaldiçoada - não pode conviver na vila. Assim, a mulher não recebe assistência para seus ferimentos, tão pouco apoio e piedade frente à violência a que foi submetida. É deixada num canto, para que morra sozinha. E claro...essa morte não é rápida...é lenta...paciente. A mulher vai morrendo aos poucos, de fome, das complicações pelos ferimentos que não foram curados. 

A vila assiste tudo ao longe e não permite que ninguém se aproxime, nem lhe socorra.

Na Bahia, há continentes de distância, duas jovens foram violadas por um grupo misógeno de pagode. As jovens da brutalidade a que foram submetidas, foram execradas pela mídia e pela opinião pública, que as rotulou com nomes dos mais lastimáveis. De vítimas, como de costume, foram transformadas em algoz dos dez homens que as estupraram: a mulher deseja ser violada, ferida, rasgada, humilhada - é o raciocínio recorrente da humanidade. Os dez homens que feriram as moças foram motivo de manifestação de apoio: elas tiveram o que mereceram. Felizmente, a justiça parece ser um pouco mais sã e mantem os criminosos enjaulados. Mas as jovens mulheres ainda não tiveram devolvida sua liberdade, sua dignidade - diante da humilhação pública e da falta de solidariedade da sociedade e mídia, estão reclusas.

A diferença entre a população que ri e dança pagode em festa da Bahia, não se difere muito da tribo africana, que deixa as suas vítimas morrerem à míngua. 

E os homens querem ser anjo. Oprimem suas mulheres - que não são suas - em nome de Jesus, do profeta, do demônio ou o que o valha. Mas os anjos devem ser piores que os animais. Nenhum gato, leão, porco, cobra pratica canibalismo ou tem o hábito de exterminar quem lhes deu a vida. Se a linguagem nos torna diferente dos animais, a razão não nos tornou melhores.

sábado, 22 de setembro de 2012

Linhagem

Quero - ainda que por agora seja intelectualmente - fazer do meu corpo o manifesto da história dos vários povos que se juntaram para compor minha linhagem. Pelo menos até onde sei. Da índia avó de minha avó pega no mato. Do avô de minha avô que veio da Itália ganhar dinheiro por aqui. Dos nagôs todos que construíram as bases dessa terra. Do meu cabelo cheio cor de fibra do dendê. Do quadril largo de boa parideira que talvez eu possa ser. Da pele preta desbotada pelas misturas. Do nariz grande que meu pai mandava apertar todas as manhãs para eu afilar - mas ele foi mais resistente, não se deixou dobrar. No corpo estão gravadas as marcas de tanta gente, de invasão, exílio, diáspora, migração, mistura. Não quero perder de vista minha linhagem para ser o que não posso. Que o corpo seja a história, a sabedoria. Não mais a castração travestida de beleza.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Espelho, espelho meu

Quando era criança, evitava olhar no espelho. Não concordava muito que eu era a pessoa que o espelho me mostrava. Permaneci assim por longo tempo. Lembro que queria saber como era meu cabelo solto. Nunca soube. Porque primeiro ele vivia com tranças,depois solto alisado à ferro, às químicas todas, curto, com tranças de fibra e agora, curto de novo.
Lá pelos 11 anos comecei a perceber que era magra demais. Até os 18 anos não usei blusa sem mangas, porque achava meus braços finos demais e me achava uma garota somaliana no espelho.
Nova luta com os cabelos. Queda, quebra, amarrações. Anos até a libertação e a aceitação de sua textura, do seu ritmo, do seu modo de ser.
Comecei a olhar para o espelho, mas quase sempre achar que não tinha muito jeito. E embora não me sentisse feia, me sentia invisível, indesejável. Lá pelas tantas, a afirmação como mulher negra, mas também o sentimento de que há muito pouca intenção de amor para mulheres negras e a postura derrotista,
Agora a nova armadilha é a passagem do número 38 para o 40. Dietas, academia, inanição. Roupas que já não cabem e a nova inadequação: me sinto gorda.
Hoje, aos 28 minutos do dia 22 de setembro, gostaria de levantar a bandeira do cansaço: cansei de lutar contra mim e aceitar passivamente o mundo que diz que gente como eu está errada. Cansei de negar toda a ancestralidade inscrita nos nossos corpos: quadril largos, seios não tão fartos, nariz chato, cabelos volumosos. Somos tantas assim. E porque querer vestir na marra um padrão inalcançável? Por que fazer do espelho o ditador do nosso direito de ser feliz?
Me liberte, espelho.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Descerá de uma estrela brilhante

Por detrás do turbilhão do dia, das páginas, das laudas, das palavras, do silêncio, do algodões sujos de maquiagem, do colesterol alto - haverá amor? Haverá amor de amante antes que a vida se rompa e leve seu último sopro. Apesar dos atentados na Líbia, dos incêndios higienistas em São Paulo, da eleição de escroques à prefeitura dessa e de uma centena de outras cidades brasileiras, os olhos lacrimejam todas as noites, ante a luz incandescente da luminária: haverá amor? Haverá amor no peito de verdade? Haverá amor e haverá verdade? Haverá sentido para estarmos irremediavelmente sós, mesmo estando juntos. Irremediavelmente sós - mas em busca daquele outro. Que virá? Como um índio - foram mortos. Todos. Ou quase todos. Sobraram raros. Que virá como os filhos de Ganghy, que trocam colares por beijo - transmitem saliva, doença, vazio. Que virá como Dionisio - incendeie meu peito, mas não queime meus dedos. Virá algum amor - que tem que existir. Como o verde. Como o que sobra de esperança, que emerge entre a borra de café, no projeto de tomateiro, que cultivo, com amor - dou me amor imenso aos tomateiros. Todas as manhãs: entrego-lhe devota: sou mulher cheia de amor, te entrego tomate. Você que é vermelho e não me diz não. Não, ao lado dele, não cresce manjericão. Mas é verde. Cultivo. Com a esperança. Haverá.

Pai, pai, filho.

A Praça da Sé era bonita. Tinha muito verde e eu andava muito à vontade nela. Ia no riacho que ficava ali perto, banhar-me. Sabe-se lá, na beira do riacho, eis que porto no colo meu filho. Um menino forte, negro e sorridente. E carregava feliz meu menino nos braços - até esse momento, nunca sonhara em ter um filho menino, sempre chamei por uma menina, de cabelos cheios e olhos grandes, que nem eu, pra criar direito e com bem amor próprio. Meu pai me ligava e eu feliz falava com ele. Que estava com seu neto, que ele era forte, saudável e bonito. Que estava tudo bem e eu estava com meu menino no riacho da Praça da Sé. Meu pai ficava feliz e era meu amigo. Queria saber do pai do menino, se era alguém bom e se seria bom para criança. E eu dizia que não tinha problema, meu filho tinha a mim. Mas ali, logo na frente, deitado na pedra se banhando, o homem negro pai do meu filho. E eu desligara o telefone. Ia colocar meu filho no colo do pai. Queria pai pro meu filho. Queria meu filho feliz. E estava. O pai não era meu homem, mas eu o amava de amizade, de carinho - como amo esse homem que existe, mas que com o qual, não tenho filho algum. Ele era bom. Estava feliz com o menino. Eu banhava os dois. E depois ia embora, com meu menino no colo. Eu era feliz com os pais e o filho. Acordei carregando uma criança que não existia perto do meu peito. Peito suspirou.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Convocatória da Amizade

Nesse mundo em que somos tantas, tantas, tantas, muitas. Nossas força é minada e espezinhada, vendida embalada em latas coloridas. Faz-se urgente sentar-se juntas. Contar histórias. Fazer unguentos. Pentear os cabelos. Pôr águas mornas para os escaldapés. Não, não, é mais tempo para corridas - chega. Competir nunca nos levou a nada. E não, casamentos não vão nos libertar mais. E não seremos tão magras. Nem Miss Simpatia. Não seremos. Sejamos companhia e riso sem temor. Sob a lua cheia, sentir seus encantos. Cozinhar a luz de velas. Tomar os chás. É mais revolucionário sermos amigas e rompermos a obviedade de um mundo que nos quer competindo. É mais revolucionário se abraçar, que disputar o belo da moda - esses belos vão passar e vão seguir a vida no vazio de sugar vaginas, com liquidez e descartabilidade. Eles querem números. E não, não somos. Somos furia, paixão, gemido e muita muita amizade. Somos tanto mais, tanto mais compaixão juntas, que narizes tortos de despeito. Somos mais perigosas amigas, mulheres, que moças objeto em propagandas de cerveja. Que o perigo seja experenciar a amizade. A amizade, sim, essa é revolucionária. E que a beleza seja de contemplar, não de nos moldar. Amigas, pela revolução.

A borboleta e o peixe

Sonhei. E estupefata defrontei-me numa realidade nova.
As borboletas cansaram de ser borboletas. Do mundo. Do ar.
Deliberaram entre si que quando fizessem a metamorfose. Virariam peixe.
Seguras, iriam viver coloridas num fundo do mar, abundante de cores únicas.
E ao ouvir a notícia na tevê, parava tudo o que fazia: que graça terá o mundo sem borboletas?
De certo, um alívio pueril: embora goste de seus movimentos, não me alegra a sensação de ter borboletas pousadas em mim. Não pousem, por favor. Só voem.
Que graça teria o mundo sem  a sua rara leveza? Quase nada é leve.
Quase tudo afunda. Até vós, borboletas.
Não, não foi verdade.
As borboletas não viraram peixe.
Ainda há leveza. E esperança.